Psy

"Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida" "Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa, ou forte como uma ventania, depende de quando e como você me vê passar" "Clarice Lispector"

16.10.06

Vendo com os olhos do coração


Nunca a vida é tão dura que você não possa torna-la melhor pelo modo como a
leva.
Ellen Glasgow



Imagem: Maurizio Moro

Eu estava cega! Foi apenas por seis semanas , mas pareceu uma eternidade.
Nesse período, eu fiquei internada sozinha, com muito medo e morta de saudade do meu marido e dos meu cinco filhos.
Tenho certeza de que a escuridão exagerava todos esses sentimentos. Eu levava horas, dias até, imaginando se poderia ver meus filhos novamente.
Passei tanto tempo com pena de mim mesma que, quando a enfermeira avisou que eu teria uma colega de quarto, nem me animei.
Ironicamente, não queria que ninguém me visse naquela situação.

O nome da minha companheira de quarto era Joana. Gostei dela imediatamente.
Joana era sempre alegre e nunca se queixava de sua doença. Quando sentia que eu estava com medo ou deprimida, ela dizia, brincando, que eu tinha sorte em não poder me ver no espelho durante aquele período. Meu cabelo estava emaranhado por ficar sempre na cama e eu engordara muito por causa da cortisona.
Depois das visitas do meu marido, Carlos, e das crianças, era Joana quem lia para mim todos os bilhetinhos e cartões recheados de “Eu te Amo” e “Fique logo boa, mamãe”.
Era Joana quem abria minha correspondência , descrevia as flores que eu recebia de parentes e amigos e me ajudava na hora das refeições. Para me alegrar, ela dizia que eu tinha sorte de não poder ver a comida do hospital!

Uma tarde, meu marido veio me visitar sozinho. Eu e ele conversamos sobre a possibilidade de eu não voltar a enxergar. Ele me assegurou que isso não afetaria em nada seus sentimentos por mim e que, não importava o que acontecesse, teríamos sempre uma ao outro. Juntos, continuaríamos a criar nossos filhos. Por horas, ele apenas me segurou em seus braços, deixou-me chorar e tentou iluminar meu mundo tão escuro.
Joana deve ter sentido que precisávamos ficar a sós e permaneceu tão quieta durante a visita que eu achei que ela não estava no quarto.




Imagem: da net


Depois que Carlos saiu, ela disse:
- Você não sabe como é feliz em ter tantas pessoas que a amam! Seu marido e seus filhos são tão lindos! Você tem tanta sorte!
Naquele momento percebi, pela primeira vez, que durante as semanas que passamos juntas no hospital minha companheira não havia recebido a visita de marido nem de filhos. Sua mãe e o padre vinham de vez em quando, mas ficavam pouco tempo.
Eu estivera tão envolvida com meus problemas que sequer permitira que ela se abrisse comigo. Pelas visitas do médico, eu sabia que seu estado era delicado, mas nunca perguntara sobre a sua doença.
Entendi, então, como fora egoísta e me odiei por isso.
Virei para o lado e comecei a chorar. Pedi a Deus que me perdoasse.
Prometi que, logo pela manhã, eu perguntaria a Joana sobre sua vida, sua doença e seus problemas e diria como estava agradecida por tudo que ela fizera por mim.
Eu lhe diria como realmente gostava dela.

Nunca tive a oportunidade.
Quando acordei, a cortina estava puxada entre as duas camas.
Eu podia perceber pessoas sussurrando e tentei escutar o que diziam. Então ouvi o padre repetir:
- Que ela possa descansar em paz.
Antes que eu pudesse dizer-lhe que a amava, Joana tinha morrido.
Soube depois que ela sabia, ao se internar no hospital, que jamais sairia deli. Mesmo assim, nunca se queixou e passou seus últimos dias me dando esperança.



Imagem: da net


Joana deve ter sentido que sua vida estava no fim exatamente na noite em que falou sobre como eu tinha sorte. Depois que chorei até dormir, ela me escreveu um bilhete. A enfermeira o leu para mim naquela manhã e, quando voltei a enxergar, eu o reli muitas vezes:

Minha amiga,

"Obrigada por tornar meus dias tão especiais!
Fiquei muito feliz com nossa amizade.
Sei que você também se importa comigo,
a “sua vista que não é vista”.
Algumas vezes, para que prestemos atenção,
Deus nos derruba, ou ao menos nos torna cegos.
Nesse meu último suspiro,
rezo para que você logo volte a enxergar,
mas não especificamente como pensa.
Você só pode aprender a ver se o fizer com o coração.
Sua vida, então, será completa.

Lembre-se de mim com carinho,"

Joana


Naquela noite acordei de um longo sono. Deitada na cama, percebi que podia identificar algum brilho na pequena lâmpada na mesinha-de-cabeceira. Minha visão estava voltando! Era só um pouquinho, mas eu podia ver!
Mais importante ainda era que, pela primeira vez na vida, eu podia ver também com o coração.
Mesmo que eu jamais venha a saber como era o rosto de Joana, tenho certeza de que ela era uma das pessoas mais bonitas do mundo.

Perdi minha visão muitas vezes desde então, mas, graças a Joana, nunca me permitirei “perder de vista” as coisas que são importantes na vida, como carinho, amor e, às vezes, arrependimento.

Bárbara Jeanne Fisher




Imagem: da net

No amor, nem sempre são as faltas o que mais nos prejudica, mas sim a maneira como procedemos depois de as ter cometido. "Oví­dio"