Psy

"Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida" "Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa, ou forte como uma ventania, depende de quando e como você me vê passar" "Clarice Lispector"

14.11.06

Erico Verissimo




"O tempo passou.
Dizem que tempo é remédio para tudo.
O tempo faz a gente esquecer.
Há pessoas que esquecem depressa.
Outras apenas fingem que não se lembram mais..."




Imagem:AD



Eu queria fazer um livro não da vida como ela é, mas como eu queria que ela fosse.

Um livro para a gente pegar e ler quando quisesse esquecer a vida real...

Eu entendo a Arte como sendo uma errata da vida.

A página tal, onde se lê isto, leia-se aquilo...











Imagem: AD




Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos.

Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror.


Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos de nosso posto!








Imagem: AD



O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, numa linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes, alheias ou nossas, antigas ou recentes, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado - e às vezes, inexplicavelmente, do futuro - enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite, parece processar-se fora do tempo e do espaço.

Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz ou pensa.

Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas, uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito.

Talvez seja por isso que com certa freqüência entramos em conflito.

Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem.

Estamos habituados um ao outro.

Envelhecemos juntos. A face do Outro é o meu calendário implacável.

"Os cabelos te fogem, homem" - murmuro-lhe às vezes - "Tuas carnes se tornas flácidas. Vejo a escrita do tempo no pergaminho do teu rosto". - "E como imaginas
que estás?" - replica o meu reflexo. Acabamos consolando-nos mutuamente com a idéia de que conservamos a mocidade de espírito. Mas até onde isso é verdade? Encolhemos os ombros e passamos a outras considerações e devaneios, enquanto o barbeador elétrico zumbe, e o incansável calígrafo invisível continua no seu sutil trabalho de amanuense da Morte.


No amor, nem sempre são as faltas o que mais nos prejudica, mas sim a maneira como procedemos depois de as ter cometido. "Oví­dio"