Eu queria trazer-te uns versos muito lindos... Trago-te estas mãos vazias Que vão tomando a forma do teu seio.
.
Todos esses que aí estão atravancando meu caminho, eles passarão... eu passarinho!
Que límpido o cristal de abril! ...
Um grito não vai como os da noite para os extra mundos... Todas as vozes, todas as palavras ditas cigarras presas dentro do globo azul vão em redor do mundo e a ninguém é preciso entender o que elas dizem; basta aquele bordoneio profundo que vibra com o peito de cada um... palavras felizes de se encontrarem uma com a outra nas solidões do mundo!
E nada vibrou...
Não se ouviu nada... Nada... Mas o cristal nunca mais deu o mesmo som. Cala, amigo... Cuidado, amiga... Uma palavra só Pode tudo perder para sempre... E é tão puro o silêncio agora!
O meu Anjo da Guarda de asas negras
tem uns olhos tão verdes como os teus. E a mesma pele mate e... benza-o Deus!... também teus mesmos lábios dolorosos...
Como o foste prender num sortilégio para ficares – sempre – junto a mim?! Ou fui eu que inventei sua aparência, nesta minha loucura sem remédio...
E não só neste mas no outro mundo o quanto eu veja se transforma em ti. Sei lá se o Anjo entende uns tais mistérios... Só sei que certa noite o pressenti, mas baixei os meus olhos incestuosos e os meus lábios sacrílegos mordi!
Quem dera eu achasse um jeito de fazer tudo perfeito, feito a coisa fosse o projeto e tudo já nascesse satisfeito
No ano passado... Já repararam como é bom dizer "o ano passado"?
É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem... Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraordinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:
"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados".
Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...
Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado. Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova. Por essas e por outras é que, nestas calçadas claras do ano bom: .
Rechinam teus sapatos rua em fora. Tão leve estou que já nem sombra tenho. E há tantos anos de tão longe venho Que nem me lembro de mais nada agora! Tinha um surrão todo de penas cheio Um peso enorme para carregar! Porém as penas, quando o vento veio, Penas que eram... esvoaçaram no ar...
Todo de Deus me iluminei então, Que os Doutores Sutis se escandalizem: "Como é possível sem doutrinação?!" Mas entendem-me o Céu e as criancinhas. E ao ver-me assim, num poste as andorinhas: "Olha! É o Idiota desta Aldeia!" dizem... .
Não tenho vergonha de dizer que estou triste, Não dessa tristeza ignominiosa dos que, em vez de se matarem, fazem poemas:
Estou triste por que vocês são burros e feios E não morrem nunca... Minha alma assenta-se no cordão da caçada E chora, Olhando as poças barrentas que a chuva deixou. Eu sigo adiante. Misturo-me a vocês. Acho vocês uns amores. Na minha cara há um vasto sorriso pintado a vermelhão. E trocamos brindes, Acreditamos em tudo o que vem nos jornais. Somos democratas e escravocratas. Nossas almas? Sei lá! Mas como são belos os filmes coloridos! (Ainda mais os de assuntos bíblicos...) Desce o crepúsculo E, quando a primeira estrelinha ia refletir-se em todas as poças d'água, Acenderam-se de súbito os postes de iluminação! .
Ela era branca, branca
Dessa brancura que não se usa mais Mas sua alma era furta-cor
Primavera cruza o rio Cruza o sonho que tu sonhas. Na cidade adormecida Primavera vem chegando.
Catavento enlouqueceu, Ficou girando, girando. Em torno do cata-vento Dancemos todos em bando.
Dancemos todos, dancemos, Amadas, Mortos, Amigos, Dancemos todos até Não mais saber-se o motivo...
Até que as paineiras tenham Por sobre os muros florido!
Os muros móveis do vento Compõem minha casa-barco. Quem foi que me prendeu por dentro de uma gota d´agua? Tolice matar-se a gente só por isso... Nem mesmo Ele, o Grande Mágico, Foge ao seu próprio feitiço!
O relógio costura, meticulosamente,
quilômetros e quilômetros do silêncio noturno. De vez em quando, os velhos armários, estalam como ossos. Na ilha do pátio, o cachorro, ladrando. (É a lua.)
E, à lembrança da lua, Lili arregala os olhos no escuro.
.
Este silencio é feito de agonias De luas enormes, irreais Dessas que espiam pelas gradarias De longos dormitórios de hospitais
De encontro á Lua, as hirtas galharias Estão paradas como nos vitrais E a Lua decalca nas paredes frias Misteriosas janelas fantasmais...
Ó silencio de quando, em alto mar Pálida, vaga aparição Lunar Como um sonho vem vindo essa fragata!
Estranha Nau que não demanda os portos! Com mastros de marfim, velas de prata Toda apinhada de meninos mortos...
.
Havia um corredor que fazia cotovelo: Um mistério encanando com outro mistério, no escuro... Mas vamos fechar os olhos E pensar numa outra coisa...
Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe, Puxando a água fresca e profunda. Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas. Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros, E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões. Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu. Havia os azulejos reluzentes, o muro do quintal, que limitava o mundo, Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas...
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos... As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros, O chiar das chaleiras... Onde andará agora o pince-nez da tia Tula Que ela não achava nunca? A pobre não chegou a terminar a Toutinegra do Moinho, Que saía em folhetim no Correio do Povo!... A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro. Ia encolhida, pequenininha, humilde.
Seus passos não faziam ruído. E ela nem se voltou para trás!
Da vez primeira que me assassinaram Perdi um jeito de sorrir que eu tinha... Depois, de cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha...
E hoje, dos meus cadáveres, eu sou O mais desnudo, o que não tem mais nada Arde um toco de vela, amarelada... Como o único bem que me ficou!
Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada! Ah! Desta mão avaramente adunca, Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!
Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai! Que a luz, trêmula e triste como um ai, A luz da morte não se apaga nunca!
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos colhidos no mais íntimo de mim... Suas palavras seriam as mais simples do mundo, porém não sei que luz as iluminaria que terias de fechar teus olhos para as ouvir... Sim! Uma luz que viria de dentro delas, como essa que acende inesperadas cores nas lanternas chinesas de papel! Trago-te palavras, apenas...
e que estão escritas do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento da Poesia... como uma pobre lanterna que incendiou!
Um poema como um gole d água bebido no escuro. Como um pobre animal palpitando ferido. Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na flores noturna. Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema. Triste. Solitário. Único. Ferido de mortal beleza.
Antes, todos os caminhos iam, hoje, todos os caminhos vêm... A casa é acolhedora, os livros poucos E eu mesmo sirvo o chá para os fantasmas...
Silêncio, Solidão, Serenidade.
Quero morrer na selva de um país distante... Quero morrer sozinho como um bicho!
Adeus, Cidade maldita. Que lá se vai o Teu Poeta.
Adeus para sempre, Amigos... Vou Sepultar-me no Céu!
E todos esses que aí estão Atravancando meu caminho, Eles passarão... Eu Passarinho!
Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora A mágica presença das estrelas!
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida. Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer a razão do meu viver, pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida ... Passo no mundo, meu amor, a ler no misterioso livro do teu ser. A mesma história tantas vezes lida!
Tudo no mundo é frágil, tudo passa ... Quando me dizem isto, toda a graça duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros : "Ah! Podem voar mundos, morrer astros, que tu és como Deus: Princípio e Fim! ..."
. Florbela Espanca
Não me procures ali Onde os vivos visitam Os chamados mortos. Procura-me Dentro das grandes águas Nas praças Num fogo coração Entre cavalos, cães, Nos arrozais, no arroio Ou junto aos pássaros Ou espelhada Num outro alguém, Subindo um duro caminho Pedra, semente, sal Passos da vida Procura-me ali Viva.
Hilda Hilst
.
|
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home