Psy

"Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida" "Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa, ou forte como uma ventania, depende de quando e como você me vê passar" "Clarice Lispector"

14.9.09

Emily Dickinson, Um Livro de Horas




Emily Dickinson

Um livro de horas

Seleção e tradução de Angela Lago
Editora Scipione, 2008

Hora do Ofertório



Isto é tudo que tenho para oferecer.
Isto, e meu coração também.
Isto, meu coração, o campo, e além.
Toda a campina selvagem.
Trate de contar - se eu esquecer.
A soma alguém deve saber -
Isto, e meu coração, e as abelhas todas
Que vivem na folhagem.



Hora Pequenina


Ninguém conheceria esta rosa pequenina,
Talvez uma peregrina,
Não fosse eu apanhá-la no caminho
Para te oferecer.
Só uma abelha terá saudade.
Só uma borboleta, bailarina,
A procurar um colo pela tarde.
Só um pássaro atento,
Só um suspiro do vento.
Ah, rosa pequenina, tão fácil sina,
Alguém como você morrer!



Hora de Esquecer


Coração, vamos esquecê-lo!
Você e eu, nesta tarde!
Esqueça o calor que ele deu,
Que esqueço a luminosidade.
Quando acabar, avise, por favor,
Para que eu apague o pensamento!
Rápido! Enquanto você pulsar,
Vou lembrar mais um momento.



Hora do Enigma


Algumas coisas que voam:
Pássaro, abelha, hora.
Não canto nenhuma agora.
Algumas coisas que ficam:
Dor, montanha, eternidade.
Não tenho necessidade.
Mas outras que ficam, voam.
Os céus eu posso explicar?
Imóvel - o enigma no ar!



Hora Sem Luz


Existe mesmo o amanhã?
Há alguma coisa como o dia?
Se eu fosse alta como a montanha
Mais além a enxergaria?
Terá pé feito açucenas?
Como um pássaro, terá penas?
Vem de um famoso lugar
De que eu nunca ouvi falar?
Marinheiro!
Estudante!
Grande sábio de algum clã!
Alguém conte à pequena viajante
Onde fica o lugar chamado amanhã.



Hora da Tristeza Sem Razão


A abelha - de mim - não tem medo,
A borboleta eu conheço.
A gente toda da mata
Se alegra quando apareço.
Os rios riem mais alto assim que eu chego.
E brinca a brisa mais louca então.
Ai meus olhos, por que tua névoa prata?
Por quê , ô dia de verão?



Hora de Suportar


Nossa porção de noite suportar,
Nossa porção de amanhecer também.
Nosso vazio, com êxtase ocupar.
Ou ao nosso vazio, o desdém.
Uma estrela aqui, outra ali.
Alguma se extravia.
Aqui névoa, névoa além,
Depois, dia!



Hora da Dor


Água, é a sede que ensina.
Terra, a travessia do mar.
Êxtase, a agonia.
Paz, o guerrear.
Amor, o retrato eterno,
Pássaros, o inverno.



Hora do Amor


Vem devagar, Jardim!
A boca desacostumada,
Ruborizada, bebe jasmim
Feito abelha embriagada.
Que a flor alcança tarde,
Ao redor do quarto arde,
Néctar, néctar - roga.
Entra, e em bálsamo se afoga.



Hora da Paixão


Diminutos rios - dóceis a algum mar azul.
Meu Cáspio - tu.



Hora do Cuidado


Tinha nos dedos um anel
E fui dormir.
O dia quente, o vento ao léu.
Pensei: - Não vai sumir.
Acordo, e meus dedos honestos desdenho.
A jóia, perdi de vista.
Agora, tudo que tenho
É uma saudade ametista.



Hora desta Carta


Todas as cartas que eu escrever
Não serão bonitas assim:
Sílabas de veludo,
Frases de cetim,
Abismos de rubi, submersos.
Impossíveis, ô lábio, para ti.
Faz de conta ser um colibri
Que sorveu a mim.


Hora Em que me Chamarem de Louca


Muita loucura é sabedoria divina
Para um olho inteligente.
Muita sabedoria, pura loucura.
Mas, como sempre,
A maioria domina:
Se você concorda, é boa gente.
Se nega, um perigoso sem cura.
Melhor prender com corrente.



Hora de Saber de Deus


O pensamento é maior que o céu.
Coloque lado a lado os dois:
O céu cabe no pensamento,
E ainda cabe você depois.
Mais do que o mar, o pensamento é profundo.
Azul mais azul pode abarcar.
O pensamento sorve o mar em um segundo,
Como a esponja sorve a gota que entornar.
Tem o peso de Deus o pensamento,
Grama a grama, lá e cá.
Se for diferente - esteja atento -
Como sílaba o som será.



Hora Sem Remédio


Dizem: - Com o tempo passa.
Mas não passa, na verdade.
Sofrimentos enrijecem como tendões, com a idade.
Tempo testa o sofrimento,
Mas não é o seu remédio.
Se passa ao passar do tempo,
Não havia enfermidade.



Hora em que Tudo Parece sem Sentido


Seu eu aparar, antes que quebre, um coração.
Minha vida não foi em vão.
Se a uma dor oferecer um vinho
Se assoprar uma ferida,
Se ajudar um passarinho
Que caiu de volta ao ninho,
Não foi em vão minha vida.



Hora Preciosa


A natureza quase não usa amarelo,
Sempre escolhe outro matiz.
Guarda essa cor para o pôr-do-sol
E desperdiça anis.
Carmim, gasta feito mulher,
Mas sonega o amarelo.
Precioso e raro o quer
Como a palavra - elo.



Hora da Alegria


Alegria é um vento
Que nos levanta do piso
E nos deixa em outra parte,
Um lugar em desaviso.
Não traz de volta, voltamos,
Sóbrios, depois de um tempo.
Novatos para uma tarde
Na terra do encantamento.



Hora da Verdade


Fale a verdade toda, mas fale de viés.
No rodeio está o sucesso.
Para nossa frágil felicidade,
A surpresa da verdade brilha em excesso.
Como o raio que, por bondade,
Alguém explica à criança que se assusta,
Deve brilhar pouco a pouco a verdade,
Ou todos seremos cegos à sua custa.



Hora da Falta


Se não tivesse visto o sol
A sombra eu suportaria.
Mas essa luz fez do meu deserto
Um deserto que antes não conhecia.



Hora do Temor


Silêncio é tudo que tememos.
Na voz há resgate.
Mas silêncio é infinidade.
Não tem face.



Hora da Esperança


Sem saber quando virá o amanhecer
Eu abro todas as portas.
Terá asas como um pássaro,
Ondulará como as encostas?



Hora do Coração na Mão


O Paraíso é tão longe
Quanto o quanto mais perto
Se nesse quarto se aguarda
Felicidade ou deserto.
Forte é o coração
Que suporta
O estalido
De um passo na porta.



Hora da Promessa


Moço de Atenas, seja fiel apenas
A você
E ao mistério.
Outro alento é falso juramento.



Hora de Esquecer


Coração, vamos esquecê-lo!
Você e eu, nesta tarde!
Esqueça o calor que ele deu,
Que esqueço a luminosidade.
Quando acabar, avise, por favor,
Para que eu apague o pensamento!
Rápido! Enquanto você pulsar,
Vou lembrar mais um momento.



11.9.09

Como Queiras, Amor...



Como Queiras, Amor...





Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras.





Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'



No amor, nem sempre são as faltas o que mais nos prejudica, mas sim a maneira como procedemos depois de as ter cometido. "Oví­dio"