Psy

"Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida" "Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa, ou forte como uma ventania, depende de quando e como você me vê passar" "Clarice Lispector"

31.1.07




Um dos livros que li há muito tempo e que estou relendo é "Olhai os lírios do campo", de Érico Veríssimo.

Alguns (críticos)podem classificá-lo como mais um daqueles livrinhos água-com-açúcar dos tantos que há por aí, mas há uma grandiosidade, uma generosidade, uma sensibilidade que salta aos olhos (é clichê, mas não encontrei melhor).

Expressa otimismo na vida, nas pessoas, a fé que Olívia teve em Eugênio. Só para mostrar um pouco disso tudo, transcrevo abaixo a carta de Olívia a Eugênio. O texto é longo, mas vale a leitura.









"Meu querido: o Dr. Teixeira Torres acha que a intervenção deve ser feita imediatamente e daqui a pouquinho tenho que ir para o hospital. Não sei por que me veio a idéia de que posso morrer na mesa de operações e aqui estou te escrevendo porque não me perdoaria a mim mesma se fosse embora desta vida sem te dizer umas quantas coisas que não te diria se estivesse viva.

Há pouco sentia dores horríveis, mas agora estou sob ação da morfina e é por isto que encontro alguma tranqüilidade para conversar contigo. Mas estarei mesmo tranqüila? Acho que sim. Decerto é a esperança de que tudo corra bem e que daqui a quinze dias eu esteja de novo no meu quarto, com a nossa filha, e meio rindo e meio chorando venha reler e rasgar esta carta, que então me parecerá muito tola e ao mesmo tempo muito estranha.

Quero falar de ti. Lembra-te daquela tarde em que nos encontramos nas escadas da faculdade?
Mal nos conhecíamos, tu me cumprimentaste com timidez, eu te sorri um pouco desajeitada e cada qual continuou o seu caminho. Tu naturalmente me esqueceste no instante seguinte, mas eu continuei pensando em ti e não sei por que fiquei com a certeza de que ainda haverias de ter uma grande, uma imensa importância na minha vida. São pressentimentos misteriosos que ninguém sabe explicar.

Hoje tens tudo quanto sonhava: posição social, dinheiro, conforto, mas no fundo te sentes ainda bem como aquele Eugênio indeciso e infeliz, meio desarvorado e amargo que subia as escadas do edifício da faculdade, envergonhado de sua roupa surrada. Continuou em ti a sensação de inferioridade (perdoa que te fale assim), o vazio interior, a falta de objetivos maiores. Começas agora a pensar no passado com uma pontinha de saudade, com um pouquinho de remorso. Tens tido crises de consciência, não é mesmo? Pois ainda passarás horas mais amargas e eu chego até a amar o teu sofrimento, porque dele, estou certa, há de nascer o novo Eugênio.

Uma noite me disseste que Deus não existia porque em mais de vinte anos de vida não O pudeste encontrar. Pois até nisso se manifesta a magia de Deus. Um ser que existe mas é invisível para uns, mal e mal perceptível para outros e duma nitidez maravilhosa para os que nasceram simples ou adquiriram simplicidade por meio do sofrimento ou duma funda compreensão da vida. Dia virá em que em alguma volta de teu caminho há de encontrar Deus. Um amigo meu, que se dizia ateu, nas noites de tormenta desafiava Deus, gritava para as nuvens, provocando o raio. Deus é tão poderoso que está presente até nos pensamentos dos que dizem não acreditar na sua existência. Nunca encontrei um ateu sereno. Eles se preocupam tanto com Deus como o melhor dos deístas.

O argumento mais fraco que tenho contra o ateísmo é que ele é absolutamente inútil e estéril; não constrói nada, não explica nada, não leva a coisa nenhuma.

Se soubesses como tenho confiança em ti, como tenho certeza na tua vitória final...

Deixo-te Anamaria e fico tranqüila. Já estou vendo vocês dois juntos e muito amigos na nova vida, caminhando de mãos dadas. Pensa apenas nisto: há nela muito de mim e principalmente muito de ti. Anamaria parece trazer escrito no rosto o nome do pai. É uma marca de Deus, Genoca, compreende bem isto. Vais continuar nela: é como se te fosse dado modelar, com o barro de que foste feito, um novo Eugênio.

Quando eu estava ainda em Nova Itália li muitas vezes o teu nome ligado ao do teu sogro em grandes negócios, sindicatos, monopólios e não sei mais quê. Estive pensando muito na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É essa a causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época.
Eles esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as relações de criatura para criatura. De que serve construir arranha-céus se não há mais almas humanas para morar neles?

Quero que abra os olhos, Eugênio, que acorde enquanto é tempo. Peço-te que pegues a minha Bíblia que está na estante de livros, perto do rádio, leias apenas o Sermão da Montanha. Não te será difícil achar, pois a página está marcada com uma tira de papel. Os homens deviam ler e meditar esse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo que não trabalham nem fiam, e no entanto nem Salomão em toda sua glória jamais se vestiu como um deles.

Está claro que não devemos tomar as parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar deitados à espera de que tudo nos caia do céu. É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Precisamos, entretanto, dar um sentido humano às nossas construções. E, quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do céu.

Não penses que estou fazendo o elogio do puro espírito contemplativo e da renúncia, ou que ache que o povo devia viver narcotizado pela esperança da felicidade na “outra vida”. Há na terra um grande trabalho a realizar. É tarefa para seres fortes, para corações corajosos. Não podemos cruzar os braços enquanto os aproveitadores sem escrúpulos engendram os monopólios ambiciosos, as guerras e as intrigas cruéis. Temos de fazer-lhes frente. É indispensável que conquistemos este mundo, não com as armas do ódio e da violência e sim com as do amor e da persuasão. Considera a vida de Jesus. Ele foi antes de tudo um homem de ação e não um puro contemplativo.

Quando falo em conquista, quero dizer a conquista duma situação decente para todas as criaturas humanas, a conquista da paz digna, através do espírito de cooperação.

E quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do mundo. Refiro-me, sim, à aceitação da luta necessária, do sofrimento que essa luta nos trará, das horas amargas a que ela forçosamente nos há de levar.

Precisamos, portanto, de criaturas de boa vontade. E de homens fortes como esse teu amigo Filipe Lobo, que seria um campeão de nossa causa se orientasse a sua ambição, o seu ímpeto construtor e a sua coragem num sentido social e não apenas egoisticamente pessoal.

Não sei, querido, mas acho que estou febril. Este entusiasmo, portanto, vai por conta da febre.

Ouço agora um ruído. Deve ser a ambulância que vem me buscar. Senti um calafrio e parece que minha coragem teve um pequeno desfalecimento. Estás vendo o tremor de minha letra? É que sou humana, Genoca, profundamente humana, tão humana que te confesso corando um pouco (apesar dos trinta anos e da profissão) que antes de ir para o hospital eu quisera beijar-te muito e muito.

Anamaria fica com D. Frida. Sei que depois, se eu morrer, virás buscá-la para a nova vida.

Reli o que acabo de escrever. Estou fazendo um esforço danado para não chorar. Tolice!
Espero que tudo corra bem e que dentro de duas semanas eu esteja queimando esta carta que já agora me parece um pouco melodramática.

Antes que me esqueça: na gaveta da cômoda há um maço de cartas que te escrevi de Nova Itália expressamente para “não te mandar”. Agora pode lê-las todas. Não encontrarás nada do meu passado, do qual nunca te falei e sobre o qual tiveste a delicadeza de não fazer perguntas. É pena. Gostaria que soubesses tudo, que visses como minha vida já foi feia e escura e como lutei e sofri para encontrar a tranqüilidade, a paz de Deus.

Adeus. Sempre aborreci as cartas de romance que terminam de modo patético. Mas permite que eu escreva.

Tua para a eternidade.

Olívia"




As palavras de Olívia surtiram efeito, pois, algumas páginas após, Eugênio, numa conversa com um colega de profissão diz:

"
Existem duas espécies de crueldade. A crueldade que se comete por cegueira, por incompreensão, e a crueldade que se comete por prazer. No primeiro caso, a educação dos sentimentos poderia melhorar a situação. O segundo é um caso de sanatório. Por isso é que eu digo que há um grande trabalho para médicos e professores."





26.1.07


Gitanjali 71


A tua ilusão é que eu seja tudo o
que eu puder ser, e que eu espalhe isso
em todo lugar, lançando sombras coloridas
sobre o teu esplendor.

Colocas uma barreira no teu próprio
ser, e depois chamas de volta o teu próprio
ser, repartido em milhares de notas musicais.
Essa parte dividida de ti mesmo
é a que se encarnou em mim.

O cântico plagente ressoa por todo o
céu em lágrimas e sorrisos de mil cores,
em sobressaltos e esperanças.
As ondas se erguem e de novo se afundam,
os sonhos se desfazem e de novo se reconstroem.
Em mim habita a derrota do teu próprio ser.

Essa tela que estendes está cheia de inumeráveis figuras,
pintadas com o pincel da noite e do dia.
E atrás dela está o teu trono, tecido em curvas maravilhosas,
sem qualquer estéril linha reta.

O grandioso cortejo de nós dois transborda pelo céu.
O ar vibra com a nossa melodia,
e as idades todas se consomem neste jogo
em que eu me escondo e tu me procuras,
ou tu te escondes e eu te procuro.
Rabindranath Tagore



25.1.07





Tão sutilmente em tantos breves anos
foram se trocando sobre os muros
mais que desigualdades, semelhanças,
que aos poucos dois são um, sem que no entanto
deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.
Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
o filho que se faz, uma árvore plantada,
o tempo gotejando do telhado.
Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe
o pó de um cotidiano desencanto.



Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos
que uma em outra pode se trocar,
sem que alguém de fora o percebesse nunca.
Lya Luft




23.1.07

Síntese das Antíteses




Só temos consciência do Belo
Quando conhecemos o Feio
Só temos Consciência do Bom
Quando conhecemos o Mal
Porquanto, o Ser e o Existir
Se engendram mutuamente.
O Fácil e o Difícil se completam
O Grande e o Pequeno são complementares
O Alto e o Baixo formam o todo
O Som e o Silêncio formam a harmonia
O Passado e o Futuro formam o tempo





Eis porque o sábio age
Pelo não agir.
E ensina sem falar.
Aceita tudo e que lhe acontece.
Produz tudo e não fica com nada
O sábio tudo realiza e nada considera seu
Tudo faz e não se apega à sua obra
Não nos prende aos frutos de sua atividade.
Termina sua obra.
E está sempre no princípio.
E por isso prospera.
Lao Te King




Imagens: da Net



19.1.07




Imagem: da Net



O merecimento maior é do homem que se encontra na arena
com o rosto manchado de sangue, suor e poeira...
Que conhece os grandes entusiasmos, as grandes devoções;
que sacrifica a si próprio por uma causa digna;
e que, quando muito, experimenta no final
o triunfo de uma grande realização...
E,... se ele fracassa, pelo menos fracassou
ao ousar grandes coisas e, por isso mesmo,
seu lugar nunca pode ser tomado
por essas almas tímidas e frias que não
conhecem nem vitórias nem derrotas.

J.F.Kennedy


Imagem: Rodrigo Ribeiro

17.1.07

Nós que aqui estamos por vós esperamos








A partir de recortes biográficos reais e ficcionais de pequenos e grandes personagens do mundo, Nós Que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos narra a história do século XX. Com 95% de imagens extraídas de arquivos, o filme pretende discutir a banalização da morte e por correspondência direta, da vida.

Curiosidade: o título foi extraído do pórtico de um cemitério de uma cidade do interior de São Paulo.


Vale a pena conferir o filme.








TÍTULO DO FILME: NÓS QUE AQUI ESTAMOS POR VÓS ESPERAMOS (Brasil, 1998)

DIREÇÃO: Marcelo Masagão, responsável também pela produção, pesquisa e edição do
filme

ELENCO: não possui, utilizando-se apenas de imagens; 55 min.

MÚSICA: Win Mestens

Imagens editadas: http://www2.uol.com.br/filmememoria/person.htm



clique na imagem para acessar o site do autor
































































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Nós que aqui estamos por vós esperamos.
De Marcelo Masagão.

Retrospectiva do Século XX.



Assisti à este filme em 1999, pela TV Cultura.
Tocou-me profundamente, tanto que coloquei no papel as cenas que me sensibilizaram. Hoje, graças a internet, consegui reunir imagens (inclusive do filme) e compor, não na sua íntegra, claro, mas o suficiente para provocar em cada um de nós, um estado de reflexão sobre o mundo e a situação em que vivemos.


É tocante a sensibilidade do homem (Marcelo Masagão) que teve a “competência” de reunir os fragmentos da humanidade do Século XX e, sem palavras, nos mostrar a “história”, através da verdadeira imagem da história.

Um filme impar que jamais esquecerei.

Me faz crer que, na verdade, a história sempre se repete.
Hoje, apesar de já termos sofrido (nós e nossos antepassados) todo o estrago de uma guerra, ainda há guerras.
Penso que sempre haverá porque, no fundo, o homem foi e ainda é um dos seres mais inteligentes da terra, assim como o mais cruel, ambicioso, vaidoso e portador do maior poder de (1) criação ou destruição: a Idéia.

Quem são os gênios deste novo século?
As personificações de Hitler?
Os criadores da história?
Os soldados mortos que alimentam a guerra?
Os civis mortos, sem fazerem a guerra?
Os filhos da guerra?
Os promotores da Paz?
Os heróis?
Os “João-ninguém”?
Os revolucionários?
As mulheres que transformam a história?
As crianças que morrem de fome?
Os excluídos do sistema?
E o progresso? O que esperamos neste século?
O que estamos fazendo para o equilíbrio (e manutenção) do ecosistema?

Há uma certeza, porém...
Nós, que vivenciamos a tudo isso, em breve, estaremos convosco, na mesma morada.

Psy


(1) Só alcança criar o que for capaz de destruir e reconstruir. O homem não cria a alma, embora se ache no direito de matar seu semelhante. Ele jamais devolverá a alma ao corpo uma vez que o tenha "matado".

No amor, nem sempre são as faltas o que mais nos prejudica, mas sim a maneira como procedemos depois de as ter cometido. "Oví­dio"